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À sombra de Mondlane, por Marílio Wane


Estátua de Eduardo Mondlane, Maputo, Mozambique, 2024 © Ivan Bruno de M via Shutterstock.

do Africa is a country

por Marílio Wane

Depois de uma eleição histórica e em vésperas de comemorar os 50 anos de independência, os moçambicanos precisam de perguntar se os valores, símbolos e instituições criados para dar forma à “unidade pátrio” ainda são legítimos hoje.

No dia 9 de Outubro de 2024, Moçambique realizou as suas sétimas eleições presidenciais, desde a orifício política e a instauração do multipartidarismo, em 1992. Até logo, o país vivia sob um regime de partido único, liderado pela Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) porquê consequência de um processo de independência, em 1975, conquistado no contexto da Guerra Fria, em que o país alinhou-se ao conjunto socialista a nível geopolítico. Entretanto, desde as primeiras eleições gerais, em 1994, o partido no poder tem vencido todos os pleitos, em grande medida, devido ao controle que, historicamente, sempre exerceu sobre o aparelho de Estado, dispondo das instituições públicas invariavelmente a seu obséquio. Tal estado de coisas tem gerado uma suspeição generalizada a reverência da transparência do processo eleitoral moçambicano em diversos setores da sociedade, a nível interno e extrínseco. E, ao que tudo indica, as atuais eleições parecem mostrar que chegou-se a um ponto crítico, de saturação de um sistema político viciado e desgastado ao longo de quase cinco décadas comandado por um mesmo grupo político.

Assim porquê tem-se verificado em todas as eleições anteriores, o pleito de 2024 caracterizou-se pelas recorrentes práticas de ilícitos eleitorais dos mais diversos tipos, na maioria das vezes, com o objetivo de propiciar o partido Frelimo. Tal percepção não resume-se exclusivamente a queixas dos seus opositores políticos, mas também tem sido consenso na opinião pública, entre observadores nacionais e internacionais, para além de diversos estudos e relatórios públicos que demonstram esta tendência histórica. O ponto crítico supra referido deve-se ao veste de que, desde as eleiçõs autárquicas de 2023, os níveis de contradição popular e da sociedade em universal aos resultados eleitorais atingiram graus elevados, com manifestações violentas respondidas com repressão policial também violenta e desproporcional. Daí que, desde logo, vive-se em Moçambique uma situação de tensão política e social, agravada pelo aumento da pobreza e precarização universal das condições de vida da população. Há, efetivamente, um sentimento de descontamento universal em relação ao presente e ao horizonte do país, muitas vezes, interpretado porquê consequência direta da excessiva concentração de poder político, parcimonioso, ideológico e institucional nas mãos de uma única força política.

Porquê tecido de fundo simbólico, o país encontra-se às vesperas de assinalar os 50 anos da sua independência política de Portugal que, entretanto, ocorre num momento de profunda crise pátrio. Naturalmente que um marco histórico de tal dimensão traz consigo todo um conjunto de reflexões e auto-análises no sentido de fazer um balanço do que foram estas cinco décadas. Isto verifica-se não exclusivamente em Moçambique, mas também em outras ex-colónias portuguesas no continente, cujos processos históricos recentes estão diretamente conectados. Neste sentido, um vestimenta ocorrido duas semanas antes da votação ajuda-nos a compfeender o significado histórico mais profundo que os acontecimentos atuais trazem à tona.

No dia 25 de Setembro de 2024, celebraram-se os 60 anos do início da Luta Armada de Libertação Pátrio, porquê é chamado o processo político e militar de enfrentamento ao colonialismo português, iniciado em 1964. Em comemoração, foi inaugurada no mesmo dia na Cidade de Maputo, uma estátua de Eduardo Mondlane, fundador e primeiro presidente da Frelimo, consagrado na história solene porquê o “arquiteto da unidade pátrio”. O que, a princípio seria uma ação pacífica e de fácil consenso na sociedade, transformou-se logo num grande transtorno para o governo devido à elevada repudiação por secção da opinião pública em relação à estátua. Para a maior secção do público e da sátira, esta não corresponderia às carcaterísticas físicas do homenageado, para além de apresentar alegados graves erros de proporção e dinâmica física. O insatisfação generalizado em relação ao resultado foi tamanho, a ponto de levar o Ministério da Cultura a montar uma equipa técnica com o objetivo de determinar a obra e, eventualmente, fazer as devidas correções.

Estátua de Eduardo Mondlane, recém-inaugurada na avenida que leva o seu nome, na Cidade de Maputo, capital do país. Pormenor: ao fundo, vemos bandeiras vermelhas da campanha eleitoral do partido Frelimo, que ajudou a fundar, há seis decadas. Foto: Marílio Wane.

À secção as questões técnicas e estéticas, nascente incidente é sintomático de uma problemática  estrutural bastante profunda da sociedade moçambicana: a cultura política autoritária, porquê legado de uma pátria construída sob um regime monolítico. Labareda a atenção o indumento de a inauguração de estátua, em substituição a uma anterior, no mesmo lugar, ter se realizado sem nenhum tipo de informação, auscultação ou interação com a sociedade. Dito de outra forma, o governo decidiu intervir sobre um importante símbolo e património cultural pátrio ligado à própria construção do país sem, ao menos, envolver a comunidade de alguma forma. Independente do préstimo administrativo, esta situação reforça uma percepção amplamente difundida no siso generalidade de “apropriação” do país por secção do partido no poder. Neste caso, estaríamos diante de uma apropriação da memória coletiva, mais precisamente, da memória da luta pela independência, frequentemente instrumentalizada porquê manadeira de legitimação para a manutenção do poder da Frelimo.

Guardadas as devidas poporções e transpondo-se para a questão eleitoral, as alegações de fraude fundamentam-se nesta percepção, corroborada pelos fatos, da notória confusão entre partido, estado e governo em Moçambique. Isto porque as inúmeras denúncias de ilícitos eleitorais registados neste em em todos os outros pleitos apontam para instrumentalização de diversas instituições públicas, desde a polícia, funcionários e instalações do estado, os meios de informação, culminando nos próprios órgãos eleitorais e judiciários. No caso concreto da estátua, a sua inauguração às vesperas das eleições abre espaço para ainda mais especulações sobre o uso da maquina pública para promover o regime.

Porquê dito anteriormente, zero disto constitui novidade, a não ser o veste de que a atual queixa popular das eleiçoes ocorre num momento auspicioso de reconfiguração do quadro político moçambicano, marcado pelo extenuação dos principais partidos de oposição histórica à Frelimo: Renamo e MDM. Tal vazio de poder, neste ano foi preenchido pelo partido PODEMOS, recentemente criado e catapultado à posição de maior ameaço real ao poder vigente através da liderança carismática do seu candidato, Venâncio Mondlane. Porquê membro da Renamo, VM7, porquê é espargido, perdeu as eleições autárquicas de 2023 na Cidade de Maputo, capital do país, contra o candidato da Frelimo. Em resposta, liderou uma série de marchas e manifestações populares de protesto aos resultados das eleições, alegadamente fraudados, que terminaram em poderoso repressão da polícia em vários pontos do país.

Tais manifestações destacaram-se pela massiva mobilizaçao de jovens, que constituem a esmagadora parcela da população do país que, de convenção com dados da UNFPA, 80% tem menos de 35 anos e, metade tem menos de 16 anos. Trata-se de um segmento da população altamente descontente com as suas condições atuais e perspectivas de horizonte, assombrada pelo desemprego, a pobreza e a violência. Para além da dimensão material, esta classe jovem não se identifica com o exposição ideológico solene patriótico, pois trata-se de uma geração pouco exposta à retórica da “Luta Armada” e de todo um conjunto de valores a ela associados. A própria adesão da juventude a Venâncio é também um revérbero dos novos tempos: boa secção da sua fala e mobilização em torno do candidato tem-se oferecido por via da Internet e das redes sociais, “furando a bolha” dos órgãos oficiais de informação social, composta pela rádio e televisão públicas, muito porquê os principais jornais impressos de circulação pátrio. Soma-se a isso o notório fortalecimento da sociedade social moçambicana, que tem também contribuído para dar voz e mobilizar não exclusivamente esta juventude massiva, mas também diversos outros setores da sociedade que demandam por maior justiça social e reverência aos direitos humanos.

Enfim, o ponto de situação é de cume intensidade de tensão, alimentada por temores de irrupção de violência política. Os principais partidos e candidatos de oposição tem-se pronunciado publicamente a constestar os resultados parciais que tem sido divulgados pelos órgãos eleitorais oficiais, que apontam para uma vitória de Daniel Chapo, o candidato da Frelimo. Mais ainda: Venâncio Mondlane chegou a declarar-se porquê o legítimo vencedor do pleito, fundamentado nas contagens paralelas internas do seu partido, para além de ter convocado uma greve universal e manifestações em todo o país, caso os orgãos eleitorais confirmem a vitória do partido no poder. De tal modo que a ensejo atual pode revelar-se, também, num ponto de inflexão histórica para esta jovem pátria, às vesperas do seu cinquentenário. Impõe-se aos moçambicanos, de forma dramática, a necessária reflexão acerca do seu próprio trajectória histórico: em que medida os ideais, os valores, os símbolos e as instituições criadas para dar forma à “unidade pátrio” permanecem válidos e legítimos nos dias de hoje?

O caso da inauguração da estátua de Mondlane no contexto das próprias eleições surge uma possante parábola sintomática de porquê diversos setores da sociedade moçambicana tem sido historicamente alijados dos processos de decisão, concentrados nas mãos de um grupo específico. Concretamente, o ato de celebração de um herói pátrio levado de forma unilateral e arbitrária revela um padrão de relacionamento entre estado e sociedade que, definitivamente, não contribui para o fortalecimento da democracia no país. Reforça, supra de tudo, a corrosão da credibilidade das instituições públicas em universal – e dos órgãos eleitorais, em pessoal – que é a motivo fundamental do insatisfação popular e da ameaço de instabilidade e violência política presentes neste momento. Transpondo para o contexto africano mais largo, trata-se da notória crise de legitimidade vivida por muitos dos movimentos libertadores africanos, tais porquê o ANC (África do Sul), o MPLA (Angola) e ZANU-FP (Zimbabwe), não por eventualidade, aliados históricos da Frelimo.

Diante do exposto, a questão que se coloca é a seguinte: seria tal crise de legitimidade um ponto de inflexão para uma espécie de “segunda independência” capaz de gerar uma novidade “arquitetura da unidade pátrio” em Moçambique?

Moçambique viveu no dia 19 de Outubro uma tragédia que veio a confirmar os piores temores quanto à instabilidade política decorrente de um processo eleitoral marcado por notórias irregularidades em prol do regime. Foram brutalmente assasinados Elvino Dias, legisperito de Venâncio Mondlane, e Paulo Guambe, representante do partido PODEMOS, ambos destacados ativistas da oposição. Embora ainda não esclarecidas, as circunstâncias e o modus operandi do transgressão geraram repúdio e indignação por secção de amplos setores da sociedade e da comunidade internacional. Entretanto e conforme esperado, no dia 24 de Outubro, os órgãos eleitorais oficiais anunciaram a vitória de Daniel Chapo, o candidato da Frelimo, com 70% dos votos. Porquê resultado, verificou-se, em diversos pontos do país, a intensificação das manifestações populares em negação, prontamente respondidas com dura repressão policial, incluindo prisões e até mortes. Enfim, é sob leste envolvente de grande tensão política que se vive depois a divulgação dos resultados oficiais destas eleições que prometem mudar os rumos da História, porquê muitos dizem e desejam pelas ruas do país.

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